terça-feira, 13 de outubro de 2009

Desenho em sépia

Ah, os fins de tarde de um feriado. É estranho andar pelas ruas de um bairro calmo depois de tanto tempo de correria. As sombras se espreguiçam enquanto famílias se reúnem nas calçadas, a tarde parece não querer ir embora. Os ares de interior são trazidos pela moto do gás que passa com seu chocalhinho irritante, pelo bolero ouvido pelo grupo de senhores saudosos dos tempos passados, pelas crianças jogando bola na praça. Passo por ali como quem é transportada de uma dimensão cheia de engarrafamentos e prédios altíssimos para uma tarde qualquer dos tempos da minha infância, ou mesmo da infância das gerações passadas. Não podia me ver ali, mas tenho certeza de que o sol iluminava meus olhos, cabelos e mãos de maneira diferente.

Até que apareceu aquela casa. Hoje é uma empresa qualquer, uma fachada comercial praticamente irreconhecível, mas há poucos anos era o lugar pra onde eu me dirigia em praticamente todas essas tardes preguiçosas. Fazíamos música e os pássaros quase sempre nos acompanhavam. Parei e olhei pelo pequeno espaço lateral do portão como fazia antigamente, pra ver se havia algum aluno e tocar a campainha sem atrapalhar a peça que por ventura estivesse sendo tocada. Não havia aluno algum, pessoa alguma, música alguma. Só nas reminiscências, que guardam tudo com uma precisão incrível.

Saí daquela rua tão leve que cheguei a temer ser levada por algum vento matreiro que resolvesse aparecer pra dissipar meus pensamentos. Enquanto isso, meus passos me levavam a um lugar qualquer, alvo da resolução de algumas burocracias relativas à minha Vida Fora Dos Feriados. “Tem que aproveitar o tempo livre”, todos sempre me dizem. E é verdade. Aproveitei pra rever um lugar que não via há tempos, senti a pouca luz do Rei Maior me iluminando antes de se despedir de nós e ir rumo a mais um expediente de energia direcionado a outro lugar. Pra mim, poder presenciar esse momento é um privilégio. Ar condicionado, lâmpada fluorescente e sala fechada me roubam os fins de tarde todos os dias. Quando saio, sempre é noite, e a sensação de que falta um pedaço do meu dia não me abandona de jeito nenhum.

Depois de resolver as pendências, fiz questão de passar por alguns livros. Li sinopses, comparei preços e até tive a pretensão de juntar alguns pra medir o espaço que ocupariam na minha futura estante. E, assim, despedi-me de um raro feriado: medindo os espaços que objetos, emoções e idéias ocuparão na minha vida de hoje em diante. Amanhã o meu mundo volta ao normal, recheado de ônibus lotados, braços cheios de livros, sons de buzinas e a boa e velha pressa, sempre constante.

domingo, 11 de outubro de 2009

Here comes the sun, little darling.

Me sinto querida quando levanto todos os dias e tomo café com o melhor pai do mundo.

Me sinto querida quando atendo àquela ligação que ocorre religiosamente todos os dias e falo sobre a minha rotina com a melhor mãe do mundo.

Me sinto querida quando sei que sempre vou ter aquela amiga-irmã mais incrível do mundo que me conhece ao ponto de adivinhar meus pensamentos e que sabe que ocupa um dos lugares mais lindos da minha vida.

Me sinto querida quando estou na biblioteca do cursinho, imersa em livros, e o tiozinho do corredor entra lá só pra falar comigo, perguntar como eu tô e continuar o seu trabalho.

Me sinto querida quando recebo algum tipo de mensagem de alguém com quem eu não falo há muito tempo, com uma simples pergunta e uma simples afirmação: “ei, você tá bem? saudades, adoro você.”

Me sinto querida quando posso escrever pra outra amiga-irmã, aquela da risada engraçada, dizendo que a amo incondicionalmente, e quando escuto as nossas gravações de tantas tardes simples e incríveis.

Me sinto querida quando estou andando pelo corredor levando um monte de livros e aquele professor de História que tanto me fez crescer e a quem eu tanto admiro me faz um carinho respeitoso ou um aceno de cabeça, me chama pelo nome ou me trata por “filha”.

Me sinto querida ao ver que aquela minha outra amiga-irmã, a que me fez gostar de sushi e tem um dos melhores abraços do mundo, sempre sabe o que dizer pra me fazer ficar melhor em qualquer situação.

Me sinto querida quando o professor de Literatura olha pra mim ao perguntar se alguém escreve poemas e diz: “aquela ali, eu sei que escreve”.

Me sinto querida quando lembro daqueles dias tão distantes em que ganhei meu chocolate preferido na páscoa e virei as madrugadas de carnaval dando prejuízos à tim.

Me sinto querida ao constatar que algumas pessoas que eu nem conheço fora do mundo do orkut têm um apreço tão grande por mim.

Me sinto querida quando releio as minhas cartas, sejam as recebidas ou os rascunhos das enviadas (ou não), e lembro do significado que cada uma daquelas palavras traz consigo.

Me sinto querida quando passo dias e dias pensando em algum presente pra alguma pessoa que me faz sentir querida, quando esse presente é dado e quando eu recebo um grande abraço de agradecimento e tenho a certeza de que acertei na escolha (tanto do presente quanto da pessoa).

Me sinto querida quando vejo algumas palavras de carinho inesperadas que aparecem numa simples página virtual.

Me sinto querida quando o professor de Biologia diz que existem pessoas que marcam a vida da gente e que eu sou uma delas.

Me sinto querida quando os meus amigos elogiam a minha voz, mesmo quando está desafinada.

Me sinto querida quando vejo que o meu gato está esperando ansiosamente pela minha chegada, e quando ele fica ao meu lado o tempo inteiro e olha pra mim como quem diz um simples “gosto de você”.

Me sinto querida quando alguém diz que lembrou de mim ao ouvir uma música de que eu gosto muito.

Me sinto querida quando posso sentir lágrimas de felicidade escorrendo pelo meu rosto ao lembrar de todas essas pequenas manifestações de carinho que muitas vezes são distribuídas sem perceber e que me fazem sentir tão leve quanto um pensamento bom.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Incontinência verbal, palavras atrasadas e querenças de um novo ano.

Pensei em fazer um pedido, era meu aniversário. 
Mas não tinha nada para pedir. As coisas vivas, pensei, as coisas vivas não precisam pedir.
Eu estava ali, onde eu deveria estar. Inteiro. Como uma gota de mercúrio.
(Caio Fernando Abreu)


Resolvi não fazer um texto de aniversário este ano. Na verdade, não chegou a ser uma resolução... Talvez tenha sido mais uma constatação simplória devido à falta de tempo e à economia de palavras que eu mesma tinha me prometido que faria em vários aspectos. Então, que aconteça um texto de pós-aniversário. Aliás... Só um ou dois parágrafos. Texto não, que texto é muito longo e o sono é grande e o dia amanhã é cansativo. (Dia cansativo, redundância, pff.)

Sabe o que eu quero de mim? Quero mais eu. Mais livros, mais espaço, mais músicas novas. Que, no ano que está chegando, eu possa ter uma estante nova pra acomodar meus novos conhecimentos e novos espaços, bem grandes e bem aconchegantes, pra acomodar novas pessoas especiais que estão chegando, seja pra compartilhar um lugar com os que permanecem ou mesmo pra ocupar o lugar dos que quiseram ir. Quero ainda mais força pra não me deixar abater pelos muitos problemas que insistem em querer me derrubar. Quero que mostrem que eu estou totalmente errada quando digo que não tenho coração até que me provem o contrário. Que 2010 traga essa prova contrária. Quero ter saudades da minha rotina deste ano, quero ter saudades dos meus professores tão queridos e das pessoas que, hoje, estão comigo todos os dias e que voarão para outras paisagens. Quero novos livros, quero viajar, quero aprender piano. Quero me enganar positivamente, quero me surpreender e quero ser um pouquinho feliz. Nem precisa ser muito não, é só pra vida ficar um tiquinho mais colorida por si só, sem que eu precise fazer esforços pra ver as cores que nem sempre existem.

No mais, pra não me exceder (acho que já virou um texto... ai menina, se controla), melhor mesmo é deixar uma frase daquele que vai me acompanhar com suas palavras pelo resto desta noite solitária de sexta.

"Colei aquele 'eu amo você' no espelho. É pra mim mesmo."

P.S.: é, também é do Caio.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Da falta de tempo e dos escritos antigos.

Tenho permissão para morrer de amor de vez em quando
E falo, e choro, e canto
Ouço músicas significativas e escrevo poemas
Penso: e agora? e a cor? e a luz?
Morro em mim enquanto tudo foge
A noite que me engole, solitária companheira
Depois que se esvai, leva tudo com ela
Os poemas nunca lidos, rasgados
As músicas, escondidas num canto obscuro de memória
As palavras correm como se nunca tivessem existido
O dia já se apresenta como um acalento prometido

Pronto.
A permissão acabou, é hora de ser forte.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Por não estarem distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!

Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

(In "Para não esquecer", Lispector)