quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Carta-crônica de tempos idos.

Lívia Vital, vital a mim!

Nem acreditei quando vi seu breve email com um simples "oi" constando como assunto. Menina, quanto tempo! Você não imagina a minha felicidade ao constatar que uma amiga tão querida, com quem eu não falo há anos, ainda lembra-se de mim. Não pude evitar um sorriso ao ler a parte em que você falava que agora eu estou uma mulher e que antes era uma menininha. É, amiga, muita coisa aconteceu. Não se espante com o estilo de escrita deste email nem com a sua provável longa extensão, mas é que eu mudei bastante de uns tempos pra cá. Uma das mudanças aconteceu com a minha maneira de escrever, como você já deve ter percebido. Sabe, você nem imagina, mas ultimamente eu ando precisando escrever. Uma necessidade urgente, como um ato proibido que é repentinamente permitido depois de um longo período de abstinência. Tanta coisa pra te contar, tanta coisa. Tantos meses, dias, horas e acontecimentos que se passaram e que foram responsáveis, direta ou indiretamente, pelas mudanças que me ocorreram! Estes emails provavelmente serão um ótimo pretexto pra te contar tudo. Talvez seja bom falar pra ti, que esteve distante o tempo inteiro e que não tem contato algum com ninguém que fez parte desse período (inclusive comigo, né, dona ausente). Perdoe-me a provável visão unilateral que eu possa vir a ter, acho que vou narrar como um Bentinho machadiano, mas vou fazer o possível pra que você tenha uma visão ampla do que me tem ocorrido nos pensamentos pra que você tire as suas próprias conclusões, já que as “principais” (entre aspas porque eu ainda tenho minhas dúvidas quanto a isso) pessoas que passaram pela minha vida pareciam não enxergar um palmo à frente do nariz e acho que continuam cegos até hoje. Mas, deixa isso pra lá, fica pra próxima. Melhor não contar nada agora, já que eu pretendo até postar este email no meu blog, quem sabe. Uma lição que eu tirei de tudo foi a de olhar só pra frente a partir de agora.

Fiquei imensamente feliz quando soube que você se casou. Parabéns, Li! Espero que esteja bem, aproveitando esse começo de uma nova fase de um relacionamento que só tende a se estabilizar com o passar dos anos. É sempre bom ver que as pessoas queridas estão conseguindo vencer em uma das principais conquistas que se pode ter na vida: tranqüilidade no coração. E o Lucas, tá bem? Deve estar um rapazinho agora. Sempre me lembro dele e de ti quando vejo Amélie Poulain. Prometa que vai transformar seu filho num completo viciado em literatura, hein. Eu farei isso com os meus, com absoluta certeza. Falando em literatura, o que eu mais tenho feito nos últimos tempos é ler. Descobri uma paixão avassaladora por História, que me tem feito devorar alguns milhares de páginas de conteúdos históricos que pra mim são interessantíssimos. O vestibular... Bom, ainda não sei se foi dessa vez. De qualquer maneira, aviso quando o resultado sair, o que acontecerá em meados de janeiro. Esse pensamento meio pessimista não é nem tanto pela prova, que foi razoável, mas pode ser justificado por algumas esperanças que eu andei nutrindo e que se foram frustrando numa velocidade absurdamente destrutiva. Então, a partir de agora, decidi carregar energia positiva dentro de mim e continuar fazendo o que posso pra alcançar o que quero, mas sempre me preparando pra pior das hipóteses. Sei lá, me sinto melhor assim. Depois que adotei essa atitude, as únicas surpresas que recebo são boas. Como é que alguém pode te decepcionar se você não esperava nada daquela pessoa? Impossível. Assim, se algo de bom vier a acontecer, por menor que seja, será sempre uma ótima surpresa.

E os planos pra 2010? Bom, eu não costumo mais fazer planos, mas há algumas possibilidades pro futuro relativamente palpáveis com as quais acho que posso contar. Tenho um estágio quase certo numa agência que trabalha com jornalismo cultural, assessoria de imprensa e que também atua como ONG. Parece ser algo promissor, andei pesquisando algumas coisas sobre a empresa e gostei muito do que descobri, acho que combina com o meu perfil. Talvez eu volte a estudar música clássica, quem sabe até montar um grupo de chorinho ou algo do tipo, sempre quis me aventurar e cantar aquelas músicas antigas que embalavam o tempo dos nossos avós. Mas, no momento, nada relativo ao futuro depende de mim. Saberei daqui a alguns dias se essas possibilidades poderão consolidar-se logo ou terão que esperar mais um ano.

No mais, flor, espero que a gente mantenha contato. Manda mais notícias, tá? Quero saber como tá a sua vida, o que tem feito. Trabalho, amor, moradia, família, essas coisas que a gente compartilha com quem a gente gosta e com quem merece a nossa confiança. Acho que estas palavras deveriam ser mandadas por carta, pelo correio, com tudo bonitinho, mas eu não ando com muito entusiasmo pra sair à rua. Tenho vivido numa bolha desde que entrei de férias, cercada de livros, de filmes e de música. Acho que, no fundo, era o que eu tava precisando depois de um ano tão difícil em vários aspectos. Espero que a intenção valha e que essa enxurrada de palavras não a tenha aborrecido. Se ainda tiver tempo de ler este email até o reveillon, um incrível ano novo pra ti e pra todo mundo de quem você gosta. Que 2010 seja doce pra você e pra mim. Boas festas, que a gente possa começar o ano com o pé direito e que nos seja permitido vivê-lo com os dois pés, as mãos e tudo o mais de que precisarmos pra atingir as nossas metas.

Te cuida, Li. Foi ótimo você ter aparecido.
Beijo, T.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Pé de cachimbo.


Hoje é domingo e, na praia, o marido jogou um copo cheio de cerveja na direção da esposa porque esta o implorava para que ele parasse de beber. A mulher rica saiu do salão de beleza onde gastara uma quantia astronômica num corte de cabelo e pareceu nem notar a presença da criança que pedia esmolas na rua. O pai ausente, que passava a semana toda trabalhando, pegou a cerveja na geladeira e ficou a tarde inteira vendo futebol enquanto o filho brincava sozinho no quarto. A namorada insensível saiu da casa do namorado apressada e impaciente, não se dando sequer o trabalho de responder às declarações amorosas que dele recebera. A adolescente, que pensava ser popular, chorou sozinha porque tinham esquecido que aquele era o dia de seu aniversário. O rapaz solitário arrumou as malas, sabendo que não teria para quem trazer um colar ou um anel como presentes da viagem. A mãe solteira, que ficava o tempo todo ansiando por um final de semana com o filho, entristeceu-se ao ver que ele preferia ficar o dia inteiro jogando videogame a ter a companhia dela. A menina sonhadora escreveu cartas para aquele que provavelmente riria dela e a desprezaria se um dia lesse aquelas palavras. A senhora de cabelos brancos, abatida pelo tempo e pelo cansaço, afligia-se porque não conseguia lembrar direito do dia em que se casou com seu falecido marido. A moça solitária tocou violão no seu quarto e desejou que alguém estivesse ali, enquanto observava o pôr-do-sol da sua janela. A mulher inteligente e infeliz no casamento sentiu que a sua vida poderia estar sendo muito diferente ao reencontrar um antigo colega de faculdade e receber dele um abraço carinhoso e nostálgico depois de tantos anos.

Hoje é domingo. Só mais um domingo no meio de tantos outros dias que nascem e morrem, encurtando as nossas vidas. A cada domingo que passa, no qual aceitamos as situações ruins, parecemos ter a certeza de que não agüentaremos a próxima segunda-feira. Tão tolos somos nós, completamente cegos para o fato de que as mudanças residem aqui dentro, no âmago, onde a contagem do tempo não alcança e não ameaça, e os domingos nada são além de um conjunto de sensações que morrem junto com o fim da madrugada.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Alguns trechos de leituras esporádicas selecionados por motivos absurdamente adoráveis.

É como se fosse a primeira vez de uma troca de olhares, de um "começo de qualquer relacionamento", coisas do tipo. Mesmo que fique na amizade, é bom. Tô me sentindo bem depois do impacto que tive ontem, tô razoavelmente bem. E que seja doce, independente do que aconteça daqui pra frente, que seja doce.

~x~

Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las.

~x~

Saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade. Amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor. Todos os beijos já existentes e não existentes todos os beijos os beijos dados mais os que estão por dar. Não se perca. Não se esqueça. Viver bem é a melhor vingança.

~x~

É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, conta histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta segredos, ilumina o corredor por onde passo todos os dias.

~x~

Anyway, me dói a possibilidade de um não, me dói a possibilidade de um silêncio, me dói não saber de que forma chegar a ele, sacudi-lo, dizer ‘me olha, me encara, vamos ou não vamos nessa?’ Bueno, os dados estão lançados, e agora só me resta lavar as mãos sujas do sangue das canções.

~x~

Não há nada a temer se você realmente se sente como eu.

~x~

Uma relação bonita, que eu quero preservar e deixar crescer. Imagino que ele também.

~x~

Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas me sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só esta vontade quase simples de estender o braço para tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nesta janela, já dissemos tudo que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação impressão ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e, com a ponta dos meus dedos, tocar você, natural que seja assim: o toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora.

~x~

EU - É possível um rio secar completamente?
ELA - Claro que é.
EU - Mas será que ele não enche depois? Nunca mais?
ELA - Alguns sim, outros não.
EU - Mas nunca mais?
ELA - Sei lá, acho que não.
EU - Você tem certeza?
ELA - Certeza eu não tenho. Só estou dizendo que acho. Afinal não sou nenhuma especialista em matéria de rios, secos ou não.
EU - Sabe?
ELA - O quê?
EU - Eu tinha esperança que o rio voltasse a encher um dia.

~x~

Preciso realmente dizer quem é o autor?
Acho que não, né.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Permita-se!

Parei na esquina. Algo pedia que eu olhasse pra trás. Não, não olhei. "Eeei, não me deixa!" Reconheci aquela voz, era uma voz triste e chorosa. Era eu. Eu, passado. Continuei firme na minha caminhada e segui.
Na outra esquina vi outra garota que sorria pra mim. Ela era diferente. Madura. Era eu de novo. Eu, futuro.
De vez em quando, eu, presente, tinha uma vontade imensa de olhar pra trás e tentar responder algumas perguntas, mas olhar para eu no passado trazia dor. Outra vez queria apressar meu passo e saber como eu estaria no futuro. A cada passo que eu dava, o meu eu futuro dava dois. E eu perdia muito tempo pensando nisso, percebi que meu futuro diminuía o sorriso cada vez que eu apressava o passo.
Então, encontrei um velhinho sábio que me deu um panfleto. Lá tinha escrito: "Um dia de cada vez". Então mudei. A partir daquele momento mudei. Coloquei um fone no ouvido e parei de ouvir o passado. Se ele não podia ser mudado, não me permiti mais pensar nele. Coloquei um óculos escuro e parei de prestar atenção no futuro. Olhei para o presente e me perguntei: O que eu posso fazer HOJE? Desde trabalhos da faculdade a ajudar alguém. Se eu sei que terei um problema semana que vem, me preocuparei com ele semana que vem. Hoje não vou desperdiçar meu dia. Todo os dias acordo, sento na cama e me proponho que hoje, apenas hoje, eu vou me permitir ser feliz!



E é aí que Caio complementa:
"Não espero nenhum olhar, não espero nenhum gesto, não espero nenhuma cantiga de ninar. Por isso estou vivo. Pela minha absoluta desesperança, meu coração bate ainda mais forte. Quando não se tem mais nada a perder, só se tem a ganhar. Quando se pára de pedir, a gente está pronto para começar a receber. O futuro é um abismo escuro, mas pouco importa onde terminará a minha queda. De qualquer forma, um dia seremos poeira. Quem é você? Quem sou eu? Sei apenas que navegamos no mesmo barco furado, e nosso porto é desconhecido. Você tem seus jeitos de tentar. Eu tenho os meus. Não acredito nos seus, talvez também não acredite nos meus próprios. Não lhe peço que acredite em mim."

"E tô achando bom, tô repetindo que bom, Deus, que sou capaz de estar vivo sem vampirizar ninguém, que bom que sou forte, que bom que suporto, que bom que sou criativo e até me divirto e descubro a gota de mel no meio do fel. Colei aquele “Eu Amo Você” no espelho. É pra mim mesmo."


Sei que tenho sido uma péssima dona, blog. Nada de palavras minhas aqui por enquanto. Achei esse post aqui e resolvi postá-lo porque li os mesmos trechos do Caio recentemente e ultimamente tenho andado muito nessa vibe. O que me aconteceu nos últimos tempos renderia páginas e páginas de assuntos não tão interessantes assim, mas eu prefiro não escrever nada agora porque a minha inspiração está sendo aplicada em um destino bem mais adorável. No mais, andei lendo muitos trechos merecedores de um espaço aqui. Acho que agora terei mais tempo de vir te visitar, mesmo que seja usando inspirações alheias. Um beijo, cem beijos. ;*

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Búfalo.

Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico. Depois o leão passou enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge. "Mas isso é amor, é amor de novo", revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e os dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura de uma cova.

Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom desviou os olhos, doente, doente. Sem conseguir — diante da aérea girafa pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas —, sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que se distraía em altura e distância, a girafa quase verde. Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda. Não. Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne, tal doce martírio em não saber pensar.

Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um macaco velho — a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente: "Oh não, não isso", pensou. E enquanto fugia, disse: "Deus, me ensine somente a odiar".

"Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. "Eu te odeio", disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não esmagava. Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho.

A mulher então experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se sentiu fraca e cansada, há dois dias mal comia. Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre os olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno. A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na primavera ao vento. Lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não correram, presas dentro da paciência de sua carne herdada. Somente o cheiro da poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao ódio seco, não a lágrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete velho sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela viera buscar. No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa. "Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?"

Então foi sozinha ter a sua violência. No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no banco da montanha-russa.

E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de todos no seu banco parecia estar sentada numa igreja. Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor — amor, amor, não o amor! —, onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar.

Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava do nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre — o grito das namoradas! —, seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, "faziam dela o que queriam", a grande ofensa — o grito das namoradas! —, a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos minutos? Os minutos a um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, ela dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-a como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve espanto.

E agora este silêncio também é súbito. Estavam de volta à terra, a maquinaria de novo inteiramente parada.

Pálida, jogada fora de uma igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e onde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó-de-arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo do meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se tivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém prestasse atenção, alisou de novo a saia, fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil. Por um momento a mulher quis, num cansaço de choro mudo, estender a mão para a terra difícil: sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo. Mas como se tivesse engolido o vácuo, o coração surpreendido.

Só isso? Só isso. Da violência, só isso.

Recomeçou a andar em direção aos bichos. O quebranto da montanha-russa deixara-a suave. Não conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati, que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta. E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.

A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro gemido.

Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa a vontade de matar — seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como se amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio? O ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói... oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se —, enjaulada olhou em torno de si e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.

Recomeçou então a andar, agora apequenada, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração gemer sem pudor, ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados, ela que não passava de uma delicada. Mas pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa? Gemeu de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recém-nascido buscar na cegueira da fome o peito da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do modo como as grades pareceram odiá-la opondo-lhe a resistência de um ferro gelado.

Abriu os olhos devagar. Os olhos vindos de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeçou a enxergar, aos poucos as formas foram se solidificando, ela cansada, esmagada pela doçura de um cansaço. Sua cabeça ergueu-se em indagação para as árvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem esperança, ouviu a leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém.

Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recém-morta, de testa ainda suada. Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do búfalo. O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os quadris estreitos, os quadris concentrados. O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas. Visto de frente a grande cabeça mais larga que o resto do corpo, como uma cabeça decepada. E na cabeça os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um búfalo negro. Tão preto que, a distância, a cara não tinha traços. Sobre o negror a alvura erguida dos cornos.

A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde.

E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os cascos secos. De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque nas trevas da cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ela pareceu tê-la visto ou sentido.

A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou.

E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.

Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos.

O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.

O búfalo como dorso preto. No entardecer era um corpo enegrecido de tranqüila raiva, a mulher suspirou devagar. Uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida naquela coisa branca e remota onde estivera.

E de onde olhou de novo o búfalo.

O búfalo agora maior. O búfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor. O búfalo de costas para ela, imóvel. O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamá-lo. Ah!, disse provocando-o. Ah!, disse ela. Seu rosto estava coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração. Ah!, instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o búfalo inteiramente imóvel.

Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado. A imobilidade do dorso mais negra ainda se aquietou: a pedra rolou inútil.

Ah! disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas.

Ah!, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro.

O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como uma grota aquele primeiro óleo amargo, a fêmea desprezada. Sua força ainda estava presa entre barras, mas uma coisa incompreensível e quente, enfim incompreensível, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca. Então o búfalo se voltou pra ela.

O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e, a distância, encarou-a.

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.

Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou o cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.

Clarice Lispector


De todos os contos dela que eu já li, esse é, sem dúvida, o meu preferido. Depois de ler essas palavras, tomei um susto enorme. Percebi que Clarice Lispector me conhece muito mais do que eu mesma me conheço. Ela viu partes de mim que eu mesma, às vezes, me recuso a enxergar.