domingo, 6 de setembro de 2009

Cacos.

A noite de sábado seguia, alegre. O céu estrelado era convidativo, mas não conseguia atingi-los completamente. Um jardim de uma praça qualquer nas proximidades do escritório, escolhido para um descanso pós-expediente, parecia o cenário ideal. Bicicletas, livros, violões e bancos de madeira acompanhavam a trajetória daqueles dois. Estavam ali, sentados na grama, negando tudo o que aquele lugar oferecia, incluindo a alegria da noite que avançava. Dois colegas de rotina, de corredores, de cafezinhos. Duas porções de cacos de porcelana, restos de algo bonito em outros tempos, que, mesmo sabendo que a recuperação total nunca seria possível, ansiavam por um método revolucionário qualquer que os fizesse voltar ao estágio anterior às inúmeras quebras.

Ele bebia. Não por questão de inflar seu ego perante outrem, mas por estar acostumado à doce companhia do álcool e por não ver nada de mal em beber um pouco quando se tem vontade. Ela também bebia. Não por influência alheia, mas por puro e simples escapismo. Que há de mal em usar de artifícios para aliviar os problemas terrenos, desde que não se exagere e não se tenha a lucidez completamente perdida? Os dois concordavam: nada.

E tudo. Concordavam em praticamente tudo. E a pequena garrafa de vodka ali, concordando com eles. Sobre as questões existenciais e sobre as tentativas de exercer algum tipo de arte que faça desse mundo algo menos hostil. Naquela noite de sábado, os dois conseguiam brilhar. Segundo alguns, tinham luz própria. Sempre muito admirados pelos amigos. Sempre muito elogiados (mesmo com uma leviandade escancarada) pelos falsos colegas.

Ela já fazia declarações menos calculadas. Chegou-se ao assunto mais delicado: a existência (ou não) do Amor. Ele, por estar mais acostumado aos efeitos que a bebida causava, percebia que ela já estava ligeiramente alterada. Resolveu, por si, parar. Continuou a ouvi-la soltando dores de outros amores e falou daquela outra que o transformara em tal amontoado de escombros. Derramou o que havia no âmago de si sobre aquela velha circunstância, que há muito saíra de seus dias. Ela, de falante compulsiva, passou a ser ouvinte exemplarmente atenta. Talvez fosse hora de um teste.
- Quer saber? Vou ligar pra ela. Preciso falar o que tá preso na minha garganta.
- Cala a boca! Você tá aqui comigo, não vai ligar pra ninguém. Se eu conseguir que uma pessoa esteja em minha companhia sem pensar em mais ninguém pelo menos uma vez na vida, já me dou por satisfeita!
“Ela é intensa mesmo, mas acabou de demonstrar sua fraqueza”, pensou, rindo por dentro. “Talvez seja o álcool, talvez sejam os próprios cacos, despertados de seu silêncio sepulcral.”

O tempo passava arrastado, as estrelas sentiam inveja do brilho daquelas palavras que jorravam pela grama. Alguns existencialismos mais tarde, ela demonstrava sonolência. Acabou dormindo nos braços dele, que só então visualizava com mais clareza os tênues traços que se manifestavam naquela mulher tão independente, tão competente, tão segura de si. Um leão, que arranca as próprias entranhas para livrar-se de um sofrimento qualquer, se preciso for. Mas que ali, imersa nas trevas do que já era madrugada, reluzia como um filhote inofensivo que não pedia nada além de atenção e de carinho.

Levou-a até sua casa. Assegurando-se de que estava tudo bem e deixando claro para a família dela que a sonolência se devia muito mais ao cansaço do que à bebida propriamente dita, saiu. Ganhava distância e perdia luz, conforme os ponteiros do relógio caminhavam.

No dia seguinte, levantou-se no horário habitual e ocultou seu brilho na costumeira máscara de regras sociais. A mesma rotina, os mesmos corredores, os mesmos cafezinhos. Mas ela não estava lá. Provavelmente, dormira mais que o habitual. Com um ar de desinteresse, perguntou à melhor amiga dela se estava tudo em ordem. Sim, estava. Na mais perfeita ordem, só houvera um pequeno atraso. Deveria estar a caminho. Como sempre, eficiente e responsável. Ele perdia-se em indagações sobre a noite anterior, será que ela lembraria de tudo? A mesma amiga, depois de observar longamente a feição dele, tomou coragem e perguntou:
- Tem alguma coisa te preocupando? Tá com um ar pensativo.
- Não, não. Nada.

E sorriu. Assim, de canto de boca, como quem descobre a solução para um quebra-cabeças feito de cacos de porcelana.

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