quarta-feira, 17 de junho de 2009

Anoitecer (Sobre a abrangência de uma imagem).


Anoitecer. Para ela, a hora mais poética do dia. Adorava o fato de sair do trabalho na mesma hora em que o sol também terminava o seu expediente naquela parte do planeta. Ao despedir-se de mais uma série de afazeres planejados e repetitivos, porém, cumpridos com destreza, deixava-se levar pela música de que ela tanto gostava e que agora tocava no som do seu carro, num volume moderado, para que não fosse preciso esforço algum para sentir a respiração alterando-se conforme o ritmo e para que a mágica melódica não se quebrasse.

Não, ela não gostava do seu trabalho. Por sorte, só precisava ficar ali por algumas horas. Tinha orgulho de ter passado em um concurso público com seus 20 e poucos anos, embora não tivesse um cargo astronômico e nem tivesse sofrido horrores para passar naquela prova. Era apenas suficiente. Sentia-se bem em um emprego que não a atraía, por mais estranho que isso possa parecer. Em experiências passadas, concluíra que quando se passa algum tempo num lugar que não agrada, o resto do dia torna-se muito mais atraente. Quando o dia inteiro é ao menos suportável e sem alegrias inesperadas, a vida acaba tornando-se maçante. Há muito tempo, vivera algo assim e nunca conseguia esquecer essa época, por mais que tentasse. Ao menos esta lição estava gravada: não se pode esquecer tudo. Agora ela tinha algo por que esperar, mesmo que fosse apenas a sensação de estar bem em um determinado local. Passara cerca de um ano trabalhando como se não ganhasse salário algum e guardara tudo o que recebera para comprar seu primeiro carro. Agora que tinha conseguido, podia dar-se ao luxo de entregar-se aos seus prazeres literários e musicais. Todas as semanas, fazia questão de ir a um sebo em especial, localizado em um lugar significativo. Não gostava muito daquela rua, ela trazia-lhe lembranças de um passado que lembrava magma. Ao passar por ali, sentia a ameaça de erupção, embora tentasse se controlar até lograr êxito. Vez em quando, gostava de comprar alguns livros novos, só para sentir aquele cheiro tão especial de páginas praticamente intocadas. Era o máximo de alteração que se permitia fazer em sua rotina.

Nesse fim de tarde, ela queria esse cheiro. De livro novo, de ar-condicionado, de piso polido. Estava bem vestida, gostava de cuidar de si e até que tinha boa aparência. Disfarçava-se muito bem no meio da sociedade hipócrita na qual se incluía. Foi ao shopping mais próximo, adentrou a livraria enorme que era fonte dos seus pequenos luxos literários, escolheu um exemplar que lhe agradasse e foi embora. Simples assim, sem mais delongas. Ao voltar para o carro e pôr o livro no banco do passageiro, que raramente era ocupado por outra coisa que não fossem livros, cd’s ou instrumentos musicais, relutou em sair dali. Talvez por não haver música, como um radar que passa a captar o sinal com mais nitidez quando não há interferência, ela conseguia prestar mais atenção no que acontecia ao seu redor e tinha a impressão de ter visto uma silhueta conhecida ali por perto. Ao se dar conta disso, ligou o carro o mais rápido que pôde e saiu dali praticamente voando. Era a erupção, de que ela tanto fugia e que, naquele momento, fazia questão de ir ao encontro dela.

Aos poucos, foi diminuindo a velocidade. Ela devia ter visto algo errado. Mesmo que fosse quem ela pensava, a consciência de que não é tão fácil assim dividir a mesma cidade, mesmo que esta seja extremamente grande e movimentada, começava a chegar à sua mente. O magma não chegou a explodir e se transformar naquela onda de luz e calor tão fortes que ela jamais poderia imaginar sua intensidade, apesar de estar dentro dela mesma. Ainda bem. Pôs uma canção mais calma e dirigiu-se à sua casa.

Certa vez, alguém lhe dissera que nós não somos o que mostramos. Temos uma caracterização de nós mesmos, uma capa que utilizamos perante aos outros, para fingirmos que somos normais e para que acreditemos que os outros também são. Só somos o que realmente somos quando entramos no nosso quarto, sem mais ninguém, e giramos a chave. De madrugada, durante as insônias, os turnos de estudo, as leituras e as tentativas de usar palavras para descrever nosso próprio mundo. Talvez por isso ela gostasse tanto da noite. Quando a claridade do sol dava lugar à tímida luz da lua, as pessoas descobriam-se, aproveitando furtivamente a leve escuridão.

Como num ritual, tirou todos os objetos da bolsa, preparou o material que levaria para a faculdade na manhã seguinte - a parte interessante do dia, quando ela se sentia mais próxima da felicidade ao lidar com uma profissão que ela realmente escolhera e que realmente pretendia seguir, tão logo acabasse o curso -, guardou o livro num lugar reservado aos exemplares não-lidos da sua estante, tomou um banho relativamente demorado e parou em frente ao espelho. Ali, conseguia dividir duas imagens. O futuro que estava se desenhando e o futuro com que ela se permitia sonhar.

O destino palpável era feito de continuidade. Uma mulher razoavelmente bonita e com razoável estabilidade financeira. Politicamente consciente e dona de uma inteligência admirável que, com o passar dos anos, acabaria se perdendo. O gosto pela música ia, aos poucos, sendo deixado de lado, mais por medo de despertar algo perigoso dentro de si que por falta de talento. O que tinha era metade. Traços de si guiados pela mão invisível do tempo e da solidão. Razoável e nunca completo. O perigo maior atendia pelo nome de sentimento.

O futuro idealizado tinha como base uma simples foto. Quando estava nos seus períodos racionais e excessivamente ligados à rotina, ela escondia aquela imagem numa gaveta qualquer, sob o argumento de não querer ser aprisionada por um fantasma que não mais existia. Dias ou meses depois, ela percebia que estava esquecendo a composição daquele cenário, daqueles rostos, daquelas cores. Era como se ela estivesse matando algo de bom que existia em seu próprio interior. Procurava com afinco, quase desesperadamente. Escondia aquilo tão bem que não sabia mais como encontrar. Depois de algum tempo, após desarrumar todo o quarto, encontrava a foto. Prendia o papel monossilábico ao espelho, como se, assim, pudesse prendê-lo à sua realidade. Quando olhava em volta, percebia a desordem do quarto. Seria uma materialização da sua mente? Ela tinha certeza que sim.

Naqueles breves instantes que pareciam durar uma eternidade, ela deixou que o mundo real escapasse dali. Estava num daqueles dias de desapego ao cotidiano, o novo livro na sua estante servia como prova irrefutável disso. A foto estava presa ao espelho e a sua mente estava, aos poucos, se reorganizando. Como se a dona do quarto arrumasse tudo com preguiça, objetivando deixar a bagunça permanecer pelo maior tempo possível. Ela estava arrumando lentamente, mas ao menos estava arrumando. Queria justificar para si mesma que estava fazendo algo para recuperar sua estrutura rotineira, ao mesmo tempo em que desarrumava alguma gaveta de maneira furtiva, tendo que, inevitavelmente, arrumá-la de novo.

Fazia tanto tempo, tanto tempo... Desde que aquela imagem e aquela palavra foram deixadas para ela com o intuito de justificar a ausência que ela não acreditava que fosse durar muito, passara a acreditar plenamente que um simples monossílabo pode definir tudo. Ao contrário do que pensara na época, a ausência durou. E durou muito. No começo, ela deixou-se levar por aquelas letras e levantava hipóteses, revendo suas atitudes e pensando no que poderia ter modificado aquela situação. Mas os meses foram passando e trazendo a realidade consigo. Se os sentimentos não podem modificar a realidade, o tempo pode modificar os sentimentos. Nos dias que se arrastavam, ela conseguia controlar seu coração quase que completamente. Exceto nos períodos de quarto bagunçado, quando ela gostava de lembrar daqueles olhos, daquele sorriso de canto de boca e daquelas músicas, além de se permitir um pouco de tristeza pela impossibilidade de despedir-se. Era o futuro sonhado que insistia em se fazer presente, como lava de vulcão que, ao iluminar, também queima. Sentiu a presença do magma naquele fim de tarde, e tal fato a assustou. Preferia pensar que aquilo era um simples desvario causado pelo cansaço e pela desordem recente que se fizera no seu quarto e no seu mundo ao procurar aquela foto novamente.

Campainha tocando. Estranho. Pouquíssimas pessoas a visitavam. Suas amigas estavam, provavelmente, saindo com seus namorados perfeitos e aproveitando a noite que derramava um luar tão doce. Saiu da frente daquele espelho, parou em frente à porta. Abriu. Pensou, por um instante, que estava olhando aquele papel e aquela palavra novamente. Eram os mesmos olhos da fotografia, acrescidos por um toque a mais de beleza e de brilho dado pelo tempo. Não, ela não fizera desvarios naquele fim de tarde. Ele voltara à cidade e estava realmente ali, na sua frente, ressuscitando do quase esquecimento como fênix.

Muitas explicações faziam-se necessárias e não havia espaço para monossílabos ali. Os laços invisíveis, que antes foram cortados pela distância e pela ilusão de que conseguiriam ser plenos ao separar-se, acabaram reatando-se. Como há alguma magia obscura em tais noites, ouve-se a voz de Chico, cantando baixinho "Te dei meus olhos pra tomares conta / agora conta, como hei de partir?". Provavelmente, o som vinha de algum vizinho solitário contagiado pela lua e perdido entre acordes apaixonados e uma sala vazia. A lua distribuía mais luz, como se soubesse da complexidade daquele momento. Da janela da sala, era possível sentir um vento leve e cálido, como lava de vulcão que não mais agüenta ficar presa nas entranhas de uma montanha fria e sólida e resolve se manifestar, trazendo toda a luz e todo o calor que guardou por uma cronologia indefinível.


PS.: Pra ficar menos confuso, basta reler o "Agridoce (Sobre a abrangência de duas letras)". Acho que está a uns dois posts atrás. Esse aqui provavelmente sofrerá algumas modificações para se tornar mais coerente, mas serviu pra mostrar o outro lado da história e deixar as coisas inconclusas. :)

2 comentários:

Lidiane Dolly disse...

"Se os sentimentos não podem modificar a realidade, o tempo pode modificar os sentimentos." Fato mais que certo.
Foi (mais) um dos teus melhores textos, fato mais que certo, outra vez.
E o magma, mais cedo ou mais tarde, há de aparecer das cinzas. Fato, de novo? Resta saber se vai haver espaço e tempo no coração, na casa e na rua pra ele surgir.
Beijo, minha escritora. :*

- Tetê - disse...

Ver de fora os dois lados da história dá a sensação de que tudo está sempre certo e que a gente é que bagunça tudo. Que bobagem! Com eu poderia pensar isso? Muito, muito bom, Thatá! ^^