sábado, 30 de maio de 2009

Agridoce (Sobre a abrangência de duas letras).


Cansado, cansado. Quase não havia dormido. De repente, como se emergisse de algum transe, abre seus olhos num sobressalto. Sim, a plataforma continua ali. Não foi um sonho. Moveu sua cabeça um pouco, procurando o melhor ângulo para que seus olhos atingissem diretamente as malas. Eram poucas, simplórias. Levavam apenas tecido, música, páginas, cenas... e um porta-retrato vazio. Ele repousava suas mãos na superfície daquele banco, procurando sentir a umidade advinda do recente nascimento da manhã, que ainda guarda as lágrimas deixadas pela chuva ao anunciar a despedida da noite. Ali, esperando aquele trem, ele também se despedia. Não da maneira tradicional, já que clichês não o atraem. Foi sutil ao distanciar-se de algumas vidas sem deixar claro que pretendia esvair-se delas. Dos poucos objetos que levava consigo, fizera questão de deixar apenas as lembranças. Uma exceção? O porta-retrato. Ao contrário dos outros componentes daquelas malas, ele deixara o objeto principal para trás e o levava apenas na memória.

O caminho até aquela situação iminente tornava-se mais difícil a cada passo dado. Na verdade, queria muito ser lembrado, queria muito não precisar ir. Tentava encarar aquele começo de manhã como se fosse normal, uma mera saída em que sua rotina mudaria ligeiramente. Chegou ao ponto de desejar ouvir uma daquelas canções leves, que se escuta ao nascer de um domingo praiano. Não funcionou. O silêncio era necessário, os pensamentos eram necessários. Torcia com todas as suas forças para não ser esquecido, apesar de ter plena consciência de que o esquecimento provavelmente seria a saída mais palpável.

Sentia muitas saudades daquela cidade, mesmo sem tê-la deixado ainda. Será que ainda pisaria ali de novo? Será que ainda ouviria aquelas vozes, andaria por aquelas ruas ou veria aqueles rostos? Por via das dúvidas, preferiu despedir-se levemente a ter que encarar sofríveis lágrimas reveladoras. Em seu julgamento pesado, pensado e repensado, fizera o certo. Tinha medo de que o esquecessem, mas tinha plena certeza de que nunca os esqueceria. O sol, a ponte, o chão daquela casa, os gestos. Estava tudo tão nítido em sua mente que ele quase conseguia tocar todas as imagens e detalhes. Ao pensar no que deixaria para trás, seus dedos crisparam-se, como se quisessem ficar eternamente agarrados àquele banco gélido de estação de trem.

A espera estava longa demais e seus esforços para não pensar nela começavam a ficar vãos. O vazio de sua mente dava lugar a uma imagem totalmente branca, com uma singular figura central, que tinha os olhos docemente fixos em sua direção, exalava feminilidade e parecia saber o exato teor de seus pensamentos desde o começo. Ela sempre foi exacerbadamente sábia, e o vestido vermelho que trajava era o mesmo daquela tarde em que ele se despedira e ela não parecera entender. Por que essa sensação ruim insistia em continuar nele? Afinal, o propósito de tudo era deixá-la livre para viver e continuar distribuindo a luz que insistia em emanar daqueles olhos que dele fugiam. Sim, talvez ela entendesse. Se não agora, depois. Quando a ausência dele se materializasse.

Uma voz conhecida o tirou das divagações e só então ele percebeu que estivera com os olhos fechados por algum tempo. O vão claro e vermelho que dominara o seu pensar tinha dado origem a outro sobressalto. A única pessoa no seu campo de visão era uma velha senhora sentada com um rádio no colo. Mal teve tempo de pensar no porquê daquilo ter causado a interrupção do seu fluxo de memórias, logo percebeu que o trem vinha apressado e devastador para tirá-lo daquele lugar. Ele parou, pegou as malas, procurou um vagão razoável e sentou-se. De onde estava, era possível ver a velhinha um pouco mais de perto e até ouvir nitidamente a música que o rádio dela tirava de si, com o esforço de pilhas baratas. Eram versos conhecidos, que ele, muitas vezes, costumava cantar junto ao seu negro violão. Saio sem alarde / sei que já vou tarde / não tenho pressa / nada a me esperar...

Ouvindo aquela canção, o trem partiu, ganhando velocidade à medida que o volume do rádio diminuía. Ele estava sendo arrancado dali aos poucos e sentia-se aliviado ao se dar conta de que certos impropérios não mais faziam parte da sua vida. Preferia não pensar em todas as situações que, em algumas épocas, fizeram-no sentir a pessoa mais preciosa do mundo. Aqueles pensamentos acabariam deixando-o mais machucado do que já estava. Melhor pensar que tomara a atitude correta, que a sua partida deixaria o caminho livre para uma felicidade merecida e que talvez, depois de algum tempo, conseguiria lembrar de tudo apenas com uma saudade contida.

Enquanto via aquelas ruas familiares pelo que temia ser a última vez, pensava no porta-retrato vazio dentro de sua mala. Imaginava aqueles olhos tão incríveis visualizando a cena impressa na foto que, um dia, estivera ocupando aquele espaço retangular de madeira. Ela, agora, era dona do seu objeto mais importante. No verso daquele papel deixado para trás, uma caligrafia que ele esperava que ela nunca esquecesse. Queria ter dito tudo o que se encontrava no seu coração e nos seus pensamentos, mas só conseguira escrever uma palavra: Se.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Dá-me o direito de dizer coisas sem sentido, de não ter que ser perfeito. (...) Virar os dados do destino, de me contradizer, de não ter meta.


Uma noite como outra qualquer. Aparentemente. Depois de uma manhã cansativa e de uma tarde costumeiramente cheia de fórmulas e termos descartáveis, eu ia de encontro ao meu descanso, como sempre. Foi então que, antes de sair, vi a lista com a classificação referente ao último simulado realizado no local onde eu estudo. Comecei a procurar meu nome pelo final da lista, tendo em vista que a classificação era geral e eu não me saio muito bem nas partes exatas das provas de primeira fase. Passados alguns instantes, um amigo diz que viu meu nome. Lá em cima. 7° lugar geral. Fiquei surpresa e feliz, obviamente, mas aquilo não me trouxe tanto contentamento quanto eu, um dia, imaginei que traria. Saí dali com os pensamentos em torno da palavra “injustiça”. Honestamente, eu creio que muita gente merecia mais do que eu aquele 7° lugar. Não estou me desmerecendo, pelo contrário. Se o meu nome estava lá, houve um motivo. Mas não creio que esse motivo seja suficiente, uma vez que eu passo a maior parte do meu tempo pensando nos últimos acontecimentos, reclamando da física, liberando meus sentimentos através da música ou lembrando as pessoas que me são importantes. E o curioso é que, mesmo eu não sendo um exemplo de vigor estudantil, meu nome estava lá. Como se fosse um sinal de algo que eu não conseguia interpretar até aquele momento.

Comecei a pensar em como eu tenho sorte e em como os elementos que hoje regem minha vida entraram no meu caminho. E se eu tivesse escolhido sentar em outra cadeira naquele primeiro dia de aula da 7ª série? Lidiane, com sua bolsa de couro a tiracolo e sua caligrafia imutável, nunca teria me perguntado “que horas são?”. Mas eu escolhi a cadeira certa e era ela quem estava comigo no último sábado, à meia-noite, sentada num sofá olhando a escuridão da sala, dizendo que eu mereço que tudo dê certo, que queria muito poder fazer algo pra me ajudar e que torce por mim. Era ela quem me abraçava enquanto eu chorava por temer o resultado da decisão que eu tomara ultimamente. Era ela quem me conhecia, talvez até mais do que a própria noite. Com ela e com mais algumas amigas, eu divido um amor de irmã que é raríssimo, nesse mundo hipócrita em que a gente vive. Na minha caminhada até a parada de ônibus, todos esses fatos circundavam minha mente, como se fossem imagens holográficas. A chuva caía leve e meus pés escorregavam na própria sandália. Precisei andar rápido, uma vez que o ônibus já havia chegado. Tive sorte por não escorregar e tive sorte pelo fato de o motorista ter esperado. Ao entrar, tive sorte mais uma vez, já que a pessoa que estava sentada na cadeira ao lado levantou-se. Pude sentar.


Janela. Chuva tornando-se intensa. Cheiro de terra molhada. Tudo contribuía para que eu pensasse. Liguei o mp3 e entreguei-me a uma das únicas coisas que permitem que eu me revele: a música. Pensava que, daqui a alguns dias, estarei indo ao encontro daquele ambiente cuja trilha sonora me marca profundamente. Talvez eu não tenha as minhas abraçadoras oficiais por perto, mas... Sim, irei feliz. Mesmo sabendo que vou acabar tendo que abraçar a mim mesma enquanto tento esconder o choro para que não me achem louca. É paradoxal pensar que eu preciso das músicas que revelam o que eu tanto luto para esconder. Mas quem disse que a vida é simples? Eu sei que não é. Tenho sorte por saber disso.

Pensei bastante em Deus, ao longo do dia. Talvez por estar lendo um livro que traz consigo uma concepção bem distante das instituições religiosas, o que me alivia. Posso até estar errada, mas sempre tive certeza de que Deus é a Natureza. Por isso, Ele se faz sempre presente. Ali, naquela cadeira de ônibus, eu O sentia perto de mim. Não fechei a janela em momento algum, precisava daquele contato com as gotículas e com aquele cheiro tão agradável. Era como se Ele estivesse sempre perto de mim e fosse responsável por colocar tantas pessoas especiais na minha vida, que sempre surgem através de coincidências e acontecimentos banais.

Tenho sorte, muita sorte, por ter essas pessoas ao meu lado. Tenho sorte também, por ter aprendido a ser quase auto-suficiente em alguns aspectos. Estou super bem com o fato de saber que, mais uma vez, o presente que chegará a mim no dia 12 de junho foi comprado por mim mesma. E daí? Deixando meu aspecto ligeiramente humilde de lado só pra descontrair... Sim, eu casaria comigo mesma, sem pestanejar, se pudesse! Hahaha! (Só pra constar, o presente deste ano vai ser bem bonitinho. ^^)

Lembrei da minha mãe. Não dela, especificamente. Do seu cheiro ou dos seus olhos verdes e cílios de boneca. Não, lembrei de uma cena que nós vivemos. As lembranças são poucas, porém, nítidas.
Carro. Eu, no banco de trás, olhando pela janela (como sempre). Minha mente estava focada na minha tia, que falecera na noite anterior e que era minha vizinha. Um AVC raríssimo e fatal. Mas não era isso o que preenchia minha mente completamente, e sim o fato de eu tê-la visto, de longe, caída naquele chão alaranjado, pouco depois de terem descoberto que ela partira. Foi uma fração de segundos, mas os seus cabelos loiros e sua blusa verde não saíam da minha cabeça naquela ocasião. Nunca tinha visto um ser humano sem vida antes, e esse acontecimento só fez dois anos. Não é um passado tão distante assim. O fato é que estávamos nesse carro, indo para um lugar que eu não lembro, com outra pessoa que eu não lembro. Quem interessa nessa cena somos eu e minha mãe. Mesmo com toda aquela dor, ela sabia que não era só por aquilo que eu chorava. Como se lesse minha mente, ela perguntou: “Tá com saudade da mãe?”. A única coisa que minha voz adolescente conseguiu pronunciar em meio às lágrimas foi “Tô”. Foi, provavelmente, o “tô” mais intenso de toda a minha vida. Ela respondeu: “Tenho saudades de você todos os dias”. Silêncio. Depois dali, não lembro de mais nada daqueles dias que se seguiram. A não ser de ter assistido a O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e ter conseguido sorrir por dentro pela primeira vez depois de tanto tempo. Não há como não chorar ao lembrar disso. Ali mesmo, naquela cadeira desconfortável de um transporte coletivo, uma lágrima teimosa quis descer, mas hesitou. Parecia uma daquelas gotas que se encontravam presas à janela. Parou ali, no canto do olho, como se não quisesse me largar e preferisse me poupar do constrangimento de rasgar minha face em pleno ônibus.

Hoje, eu posso dizer que minha mãe já me apresentou a uma pessoa usando estas palavras: “Aqui está a minha filha. Ela tem um caráter de dar inveja a qualquer ser humano”. Eu tenho sorte por poder ouvir essas frases. Tenho sorte por ter uma mãe que faria absolutamente tudo por mim e faz questão de deixar isso bem claro pra quem quer que seja. Tenho sorte por ter um pai que confia plenamente em mim, a ponto de me pedir conselhos sobre negócios ou vir conversar comigo porque se sentiu mal na noite anterior e teve vontade de chorar. Tenho sorte por poder ajudá-lo e por fazer com que as minhas palavras de “Pai, não se preocupe e viva um dia de cada vez. Eu tô aqui e o senhor sabe disso” surtam efeito e façam com que a tristeza vá embora. Tenho sorte por finalmente perceber que eu devo, sim, ir atrás dos meus sonhos. Mesmo que eles pareçam inatingíveis ou que eu precise pagar um preço muito alto por me atrever a buscar minha felicidade. Deus, em forma de chuva, fez-me perceber que Ele está presente em tudo e que qualquer sentimento bom que eu tenha deve ser demonstrado, não importando as conseqüências que isso possa acarretar. Sei que Ele não julga mal sentimento nenhum que seja sincero e bonito.

Estava chegando perto de casa. Desliguei o mp3 e a máquina de pensamentos existenciais. Peguei o guarda-chuva dentro da bolsa e desci. Quando pensei em abri-lo para me proteger das gotas, desisti. A chuva, com seu cheiro magnífico e sua presença quase divina, foi quem deu margem a tantos pensamentos. Ela estava ali comigo e eu precisava deixar que me tocasse. Se era Deus, eu não tenho certeza. Mas eu senti que era. Assim como existem lágrimas de tristeza e de felicidade, a chuva trazia consigo uma mensagem que poderia ser decifrada ou não. Na esquina da minha casa, estava acontecendo um culto numa igreja evangélica. Eles estavam lá, cercados por paredes que os protegiam da chuva, clamando por Deus. Mal sabiam eles que as respostas que tanto procuravam poderiam estar ao alcance das mãos. Bastava livrar-se da cegueira e enxergar. Mas, nem por isso, creio que eles vão deixar de ter suas almas lavadas. Esse Ser Superior que nos rege está dentro de cada um de nós, tornando-nos fortes e propiciando-nos momentos tão simples e incríveis.

Ali, naquela rua tão familiar, eu me sentia perto desse Ser, seja ele qual for. Uma pequena peça da engrenagem do mundo, aparentemente tão insignificante. Cansada, sem me importar com a aparência ou com o fato de que minha apostila estava mais úmida do que deveria. Mas ah, eu não queria me ver assim. Por algum motivo, naquele momento, eu não enxergava em mim apenas uma moça baixinha e bochechuda que precisa perder uns quilinhos. Eu estava feliz, bem, resolvida. E nada nem ninguém poderia me arrancar desse estado de espírito.



terça-feira, 19 de maio de 2009


Nosso poder de confundir as coisas chega a ser assustador. Escutamos errado, interpretamos errado, escrevemos errado. Provavelmente, alguma parte do nosso cérebro é responsável por tais acontecimentos, como se quisesse nos pregar uma peça ou mesmo rir da nossa cara. Tá bom, tá bom, eu sei que cérebro não pode rir. Mas ele é o mestre, não é? Pode muito bem dar a ordem para que possamos rir das nossas próprias confusões. Ou das confusões dos outros (que, sem hipocrisia, são as melhores).

Existem várias maneiras de se equivocar involuntariamente em alguma tarefa. Ao escrever fórmulas numa aula de física, por exemplo, podemos trocar um R por um F. Motivo? Pensamentos voadores, claro! Vai que o nome da “tal pessoa” começa com F e os humanos, exacerbadamente apaixonados que são, acabam vendo as iniciais do que parece ser o nome mais lindo do mundo em todos os lugares? É mais normal do que bater o pé no ritmo de uma música bacana que ecoe nos ouvidos.

As ligações erradas são um trunfo à parte. Por surdez, distração, pressa ou qualquer outro motivo, nós anotamos o número errado, trocando um 6 por um 3, por exemplo. (Por sinal, ao dar seu telefone para alguém, refira-se ao 6 como “meia”. Evita ao menos um desses deslizes.) Uma simples inconveniência por parte do nosso querido e zombeteiro cérebro pode acarretar desastrosas conseqüências. Qualquer um ficaria aborrecido ao receber ligações como esta:

- Alô, meu amoooor! Ah, você não sabe o quanto eu tenho saudades de você!
- Alô quem?
- Sou eu, meu bem! Aaah, te conheço. Só porque a ligação tá meio ruim, cê fica aí se fazendo de difícil. Até parece que eu vou acreditar que você não lembra de mim! Cê tava tão linda na última vez em que nos vimos, com aquele biquíni azul-piscina!
- Hã? Biquíni? Meu filho, eu sou uma velha de 78 anos! Não uso biquíni.
- Hein? Desculpa aí, senhora! Ligação errada!

Resultado? Trauma. Tadinha da velhinha. Algumas delas poderiam até achar ótimo o fato de receberem uma ligação de um rapaz dizendo que elas ficam ótimas de biquíni, mesmo que seja um engano. Mas é melhor acreditar na pureza da nobre senhora e ficar com a hipótese de que ela tenha ficado, no mínimo, envergonhada. Sem contar o rapaz que, ansioso por despejar seus galanteios, acabou indo com muita sede ao pote e dando uma cantada numa senhora que poderia ser sua avó.

O pior é que não há como se prevenir de tais situações. Conheço casos de pessoas que receberam ligações de esposas furiosas e, usando um senso de humor quase cruel, fingiram ser amantes do marido em questão. Quase acaba em morte. Eu mesma já estive envolvida indiretamente numa ligação equivocada. Um amigo que, por sinal, foi quem me pediu para escrever este texto, anotou o número do meu telefone erroneamente. Ao ligar para mim, acostumado a despejar suas adoráveis pilhérias sobre o meu aspecto indígena, perguntou para o interlocutor: “É da tribo da Thamires?”. Não preciso nem descrever a situação embaraçosa que ali se formara. Basta dizer que, até hoje, várias pessoas costumam ligar para minha casa perguntando se aqui há garrafões de água para vender. Para os que atendem a essas ligações, recomendo a paciência e o senso de humor, acima de tudo. Deixo aqui o apelo para os que me ligarem equivocadamente. Não levem a mal se eu usar meu humor tipicamente cearense para rir dos seus enganos. É que não tem como não gracejar com as pequenas falhas cometidas pelos nossos mortais neurônios.




PS: Pensou que eu fosse esquecer, né? Não mesmo. Promessa é dívida, eis o texto. :]

domingo, 17 de maio de 2009

Luiza acabara de acordar. Naquele instante, seus olhos castanhos geneticamente dominantes quiseram abrir-se e lançar alguma luz naquele lugar. Da janela, migalhas de sol beijavam o chão do quarto. Era um momento transitório entre o subconsciente e a realidade. Pegou um dos vários livros que dormiam junto com ela na cama, ocupando o pequeno espaço acima de sua cabeça que fora destinado apenas para as páginas que a aliviavam do peso do mundo. Não conseguia visualizar as palavras, ainda estava sonolenta e começava a sentir uma ponta de dor de cabeça que, se não fosse curada ali, se estenderia pelo resto do dia. Não, ela queria um dia bom, ao menos pra variar. Fechou o livro e pôs-se a pensar, a processar. Sempre estava pronta para a profundidade, fosse ela qual fosse.

Fixou a mente em sua amiga, Rachel. Como ela poderia amar alguém que era só ausência, congelado na intocável distância? Como ela pôde cair nessa teia aparentemente invencível e sentir-se feliz com a materialização de um espectro, que só se mostrava nos sonhos? Luiza sabia. Sim, ela sabia como isso poderia acontecer. Ela sabia, principalmente, como sentir tais coisas. Na verdade, achava que era um poço de sentimentos alheios. Talvez até pudesse sentir o que estava ao seu redor, como se absorvesse tudo por algum processo osmótico. O fato é que sua visão sobre tal situação era límpida como um lago pertencente a algum lugar paradisíaco. Era tudo transparente e tentador, mas, ao aproximar-se, seria possível ver o barro no fundo. Ela sabia de tudo isso porque sempre foi especialista em sentir-se assim.

Fantasmas, sobretudo os inventados, a atraíam e povoavam seus sonhos quase todas as noites. Ironicamente, os sonhos eram sempre esquecidos nas primeiras horas da manhã. Talvez isso tivesse acabado de acontecer. Ela sonhara com algo ou alguém, mas não lembrava exatamente. Por isso, a sensação de vazio. A eterna dúvida de Dom Casmurro seguia por essa linha. Aconteceu ou não? Fato ou ilusão? O sonho estava presente nela, mas não se manifestava. A vida estava presente nela, mas não se manifestava. Os sentimentos estavam presentes nela, mas não se manifestavam. Sobre Dom Casmurro, ela tinha suas conclusões: Capitu sempre fora a vítima. Foi ela que esperou a vida inteira pela saída de Bentinho do seminário, foi ela que lhe deu um filho, foi ela que sempre ficou ao lado dele e teve que suportar a sensação de ter seu sentimento julgado paranoicamente por aquele a quem dedicou a própria vida. Ah, a injustiça do mundo e a beleza das contradições causadas por palavras não ditas...

Saía, agora, de análises literárias e mergulhava nas lembranças. Sentia saudades de Marcelo. Talvez, se estivesse ao lado dela durante um dos novos dias, conversaria sobre o gol que fez na última partida em que seu time jogou, sobre a bronca que levou do treinador, sobre a sua rotina corrida que, naquela época, era quase idêntica à dela. Eles tinham problemas diferentes e viviam situações diferentes, talvez por isso tivessem conversas sempre tão produtivas. Era bom ter contato com um mundo que não era dela e que ela, de maneira alguma, desejaria participar. Tratava-se apenas de conhecimento, sem mais pretensões. Sentia saudades sinceras de quando ele “roubava” sua apostila para rabiscar o próprio nome, de quando eles iam ao shopping mais próximo comprar seus chocolates preferidos, do jeito com que ele falava “te adoro” no meio de uma conversa totalmente banal, de como ela se sentia mais respeitada do que as outras garotas que conviviam com ele, do dia em que ele esteve doente e ela andara pelo bairro inteiro procurando comprar um remédio para aliviar sua dor, do dia em que ela esteve doente e ele ficou o tempo inteiro ao lado dela – remédios não eram necessários naquela ocasião – dizendo apenas que precisava cuidar dela da mesma maneira com que foi cuidado, da sua mania de estralar os dedos e de tantos outros detalhes que estiveram presentes na amizade deles, que foi ao mesmo tempo tão intensa e tão efêmera.

Pensava em possibilidades. O que poderia ter acontecido? Será que, não fossem as circunstâncias, a vida dela poderia ser diferente do que estava sendo agora? Luiza, aquela que transmite luz, que tem seu nome protagonizando uma das mais belas canções da música brasileira. Teria ela deixado pessoas importantes para trás? Não, não pode ser possível. Ela sempre tentara ser a pessoa mais amável e mais carinhosa com todos aqueles com quem se importava. Em sua nova rotina, até aparecera alguém que parecia se importar com ela e desejar estar perto dela. Por mais que ele não a conhecesse completamente, ela conseguia sentir uma vontade de aproximação vinda dessa pessoa. Talvez estivesse na hora de admitir que, na verdade, ela é quem fora deixada para trás. Talvez estivesse na hora de viver, de parar de ter medo e de arriscar se machucar.
Promoveu o leve encontro das pálpebras por alguns instantes, deixando de iluminar o quarto com o brilho castanho que vinha daquele olhar. A dor de cabeça havia desaparecido. Levantou-se, tomou um banho demorado e arrumou-se, cantarolando uma canção qualquer. Destruída por dentro de tanto pensar e, mesmo assim, sustentando uma aura quase indestrutível por fora. Como só as mulheres decididas sabem fazer.





PS: Texto inspirado em “As Horas”, de Michael Cunningham. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
PS2: Luiza, minha primeira criação de personagem com um quê de esfericidade, estava dentro de mim há tempos. Ainda penso nesse nome para minha primeira filha. Ela merecerá uma música e, se é para ter uma música, que seja a mais linda das músicas. Luizas são minhas criações e, de certa forma, pedaços de mim.

Sobre janelas, pássaros e prisões.




Feriado. Fim de tarde. Após ver um filme mediano, estava gastando meu precioso tempo livre da maneira da qual mais gosto: lendo um livro. Não, não tinha nada a ver com vestibular. Era um livro introspectivo, cujas 16 primeiras páginas já estavam no limite de arrancar-me lágrimas.

Eis que ouço um bater de asas. A janela do meu quarto é coberta pelo que chamam de toldo, a cobertura rosa da janela da foto. Dois pássaros estavam presos dentro desse toldo, voaram lá para baixo de alguma maneira e não conseguiam mais sair. Eles pareciam sofrer. Havia uma barreira que os separava do mundo, eles estavam presos naquela minúscula área escura e coberta, não viam o céu e só sabiam bater as asas insistentemente. Larguei o livro sentimental e fui ver de perto o que acontecia. Tentei chamá-los (o que rendeu risadas aqui em casa, eu os chamava como se fossem cachorrinhos), tentei bater na janela para que se assustassem com a minha fingida agressividade e se libertassem dali, pus as mãos para fora e tentei tocá-los. Mas eu falhei, pra variar. Meus braços são pequenos demais, eu não sei enganar as pessoas fingindo ser rude, minha máscara acaba caindo nessas situações e eu acabo sendo refém de mim mesma ao realizar algum ato amável, quase sempre. O fato é que eles ainda estavam ali, sendo privados do mundo que os cercava. Por alguns momentos, pararam e pousaram nos ferros internos do toldo, como se desistissem. Como se permitissem que aquela cobertura os oprimisse e os fizesse sofrer. Às vezes, nos acostumamos com o sofrimento. Às vezes o fato de certas situações nos trazerem pequenas alegrias momentâneas nos faz esquecer que as tristezas e destruições são muito maiores que os efêmeros segundos de felicidade. Então, continuamos a sofrer esperando pacientemente o próximo mínimo momento feliz chegar. Tornamo-nos conformados, deixamos para lá e seguimos o desperdício de um tempo que poderia ser tão melhor aproveitado.

Estava observando-os e pensando sobre isso, até que um deles conseguiu escapar. Quase numa queda livre, mergulhou e alçou vôo em direção ao seu destino incerto. O outro ficou ali, estagnado, conformado, parecia que ficaria preso eternamente. Olhava fixamente para a barreira que o impedia de voar e continuava pousado em cima dos ferros de sustentação do toldo. Falava pra ele, nos meus pensamentos: “Por favor, por favor, deixa eu te ensinar a voar?”. Tinha vontade de ensiná-lo, como se ele não soubesse. Falaria, daquele meu jeito, que a situação era simples e o mundo é que fez questão de complicá-la. Era só mergulhar no ar, voar baixo e sair daquela clausura que o tirava do céu. Eu faria tudo, daria tudo de mim pra libertá-lo. Tudo bem, pode ser só um pássaro, mas eu tenho um instinto que me diz pra evitar qualquer tipo de sofrimento que possa ser evitado. O instinto era categórico ao deixar bem claro que eu tinha que fazer tudo o que fosse possível pra libertá-lo. Dar-lhe o mundo era o que eu mais queria. Depois de um tempo, de alguma maneira, ele parece ter me ouvido. Finalmente tomou coragem, atirou-se, libertou-se e voou.

O curioso é que ele não voou para longe. Pousou num fio ali, em frente à minha janela. Como se, ao ficar ali parado, me dissesse: “Desculpe, mas agora eu vou ter que me despedir de você. Não posso ser seu, não posso estar sempre com você, não posso tirar essa sua solidão que já se encontra enraizada. Você me ajudou e agora estou indo embora. Preciso da minha liberdade e da minha conformidade em sofrer nas gaiolas que aparecem na minha frágil vida. Peço desculpas, muitas desculpas, por não poder salvar-lhe. Mas agradeço eternamente a você, minha salvadora.”

De mim, uma prosa poética.

Meu mundo é feito de observações. Pequenos fragmentos de memórias, experiências que são acumuladas como um arquivo infindável de fatos que estão sempre prontos para uma rápida pesquisa, em qualquer situação. Meu mundo é feito de momentos epifânicos, de fins de tarde sinfônicos, de explosões de cores, de desilusões de amores, de súplica por abraços, de superação de obstáculos, de zelo pelos amados, de respirações profundas, de silêncios calculados, de segredos guardados, de corações apertados. Meu mundo se distribui uniformemente e não pode ser visto, apesar de permitir que sintam quando estão dentro dele. Faz-se uma bolha, exigindo atenção e capturando todas as coisas boas no maior raio de distância possível. Ele vê e ouve tudo o que está ao seu redor e é um ótimo medidor de sentimentos alheios, apesar de perder-se nos que pertencem a si próprio. Meu mundo é confuso. Às vezes parece um quadro de Da Vinci, com suas formas milimetricamente definidas e sua iluminação perfeita; às vezes parece um quadro de Salvador Dalí, com suas idéias tão caleidoscópicas que parecem as mais sãs do planeta; às vezes parece um quadro abstrato qualquer, sem definição de imagem e que só é real por causa da existência de suas cores pragmáticas. Meu mundo é incompleto, mas nem por isso é desesperançoso. Ele busca nos mais banais detalhes uma alegria qualquer, um bem-me-quer, um sopro de satisfação, um alívio pro coração. Meu mundo é bonito e claro, como um domingo límpido iluminado por olhos azuis infantis, mas isso não quer dizer que a chuva não venha querer apagar-lhe a beleza às vezes. Muitas vezes, tantas vezes. Meu mundo é musical. Encanta-se e perde-se de amores por qualquer tom angelical, por qualquer recital, por quaisquer interpretações, por quaisquer sensações. Meu mundo derrete-se até pelos erros que, se cometidos de forma natural, fazem da música o bem mais magistral. Meu mundo não tem endereço fixo. Gosta de perder-se por aí, de vagar dentro de mim, de escapar-me entre os dedos. Meu mundo é dedicado, é intenso, é apaixonado, é literário, é imaginativo, é oblíquo e é dissimulado. Meu mundo foge de conceitos e se esconde para não precisar ser interpretado. Meu mundo, muitas vezes, sou eu. Ele mostra todas as faces de mim. E eu me surpreendo comigo mesma, todos os dias.