domingo, 17 de maio de 2009

Luiza acabara de acordar. Naquele instante, seus olhos castanhos geneticamente dominantes quiseram abrir-se e lançar alguma luz naquele lugar. Da janela, migalhas de sol beijavam o chão do quarto. Era um momento transitório entre o subconsciente e a realidade. Pegou um dos vários livros que dormiam junto com ela na cama, ocupando o pequeno espaço acima de sua cabeça que fora destinado apenas para as páginas que a aliviavam do peso do mundo. Não conseguia visualizar as palavras, ainda estava sonolenta e começava a sentir uma ponta de dor de cabeça que, se não fosse curada ali, se estenderia pelo resto do dia. Não, ela queria um dia bom, ao menos pra variar. Fechou o livro e pôs-se a pensar, a processar. Sempre estava pronta para a profundidade, fosse ela qual fosse.

Fixou a mente em sua amiga, Rachel. Como ela poderia amar alguém que era só ausência, congelado na intocável distância? Como ela pôde cair nessa teia aparentemente invencível e sentir-se feliz com a materialização de um espectro, que só se mostrava nos sonhos? Luiza sabia. Sim, ela sabia como isso poderia acontecer. Ela sabia, principalmente, como sentir tais coisas. Na verdade, achava que era um poço de sentimentos alheios. Talvez até pudesse sentir o que estava ao seu redor, como se absorvesse tudo por algum processo osmótico. O fato é que sua visão sobre tal situação era límpida como um lago pertencente a algum lugar paradisíaco. Era tudo transparente e tentador, mas, ao aproximar-se, seria possível ver o barro no fundo. Ela sabia de tudo isso porque sempre foi especialista em sentir-se assim.

Fantasmas, sobretudo os inventados, a atraíam e povoavam seus sonhos quase todas as noites. Ironicamente, os sonhos eram sempre esquecidos nas primeiras horas da manhã. Talvez isso tivesse acabado de acontecer. Ela sonhara com algo ou alguém, mas não lembrava exatamente. Por isso, a sensação de vazio. A eterna dúvida de Dom Casmurro seguia por essa linha. Aconteceu ou não? Fato ou ilusão? O sonho estava presente nela, mas não se manifestava. A vida estava presente nela, mas não se manifestava. Os sentimentos estavam presentes nela, mas não se manifestavam. Sobre Dom Casmurro, ela tinha suas conclusões: Capitu sempre fora a vítima. Foi ela que esperou a vida inteira pela saída de Bentinho do seminário, foi ela que lhe deu um filho, foi ela que sempre ficou ao lado dele e teve que suportar a sensação de ter seu sentimento julgado paranoicamente por aquele a quem dedicou a própria vida. Ah, a injustiça do mundo e a beleza das contradições causadas por palavras não ditas...

Saía, agora, de análises literárias e mergulhava nas lembranças. Sentia saudades de Marcelo. Talvez, se estivesse ao lado dela durante um dos novos dias, conversaria sobre o gol que fez na última partida em que seu time jogou, sobre a bronca que levou do treinador, sobre a sua rotina corrida que, naquela época, era quase idêntica à dela. Eles tinham problemas diferentes e viviam situações diferentes, talvez por isso tivessem conversas sempre tão produtivas. Era bom ter contato com um mundo que não era dela e que ela, de maneira alguma, desejaria participar. Tratava-se apenas de conhecimento, sem mais pretensões. Sentia saudades sinceras de quando ele “roubava” sua apostila para rabiscar o próprio nome, de quando eles iam ao shopping mais próximo comprar seus chocolates preferidos, do jeito com que ele falava “te adoro” no meio de uma conversa totalmente banal, de como ela se sentia mais respeitada do que as outras garotas que conviviam com ele, do dia em que ele esteve doente e ela andara pelo bairro inteiro procurando comprar um remédio para aliviar sua dor, do dia em que ela esteve doente e ele ficou o tempo inteiro ao lado dela – remédios não eram necessários naquela ocasião – dizendo apenas que precisava cuidar dela da mesma maneira com que foi cuidado, da sua mania de estralar os dedos e de tantos outros detalhes que estiveram presentes na amizade deles, que foi ao mesmo tempo tão intensa e tão efêmera.

Pensava em possibilidades. O que poderia ter acontecido? Será que, não fossem as circunstâncias, a vida dela poderia ser diferente do que estava sendo agora? Luiza, aquela que transmite luz, que tem seu nome protagonizando uma das mais belas canções da música brasileira. Teria ela deixado pessoas importantes para trás? Não, não pode ser possível. Ela sempre tentara ser a pessoa mais amável e mais carinhosa com todos aqueles com quem se importava. Em sua nova rotina, até aparecera alguém que parecia se importar com ela e desejar estar perto dela. Por mais que ele não a conhecesse completamente, ela conseguia sentir uma vontade de aproximação vinda dessa pessoa. Talvez estivesse na hora de admitir que, na verdade, ela é quem fora deixada para trás. Talvez estivesse na hora de viver, de parar de ter medo e de arriscar se machucar.
Promoveu o leve encontro das pálpebras por alguns instantes, deixando de iluminar o quarto com o brilho castanho que vinha daquele olhar. A dor de cabeça havia desaparecido. Levantou-se, tomou um banho demorado e arrumou-se, cantarolando uma canção qualquer. Destruída por dentro de tanto pensar e, mesmo assim, sustentando uma aura quase indestrutível por fora. Como só as mulheres decididas sabem fazer.





PS: Texto inspirado em “As Horas”, de Michael Cunningham. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
PS2: Luiza, minha primeira criação de personagem com um quê de esfericidade, estava dentro de mim há tempos. Ainda penso nesse nome para minha primeira filha. Ela merecerá uma música e, se é para ter uma música, que seja a mais linda das músicas. Luizas são minhas criações e, de certa forma, pedaços de mim.

3 comentários:

Josh Lima disse...

Ah! Muito bom...

q evolução.... Adorei a escrita e a forma em q presenciou tudo!!!

Adorei...

Continue com estes contos, continue!!!

Lidiane Dolly disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Um dos seus (muitos) melhores textos, forever. :*